A Visita

As três desavisadas toutinegras,
as que hoje me chegaram de visita,
de capas e antenas cor de rosa,
sapatos de pelica,
trouxeram como prendas: rima ou não?,
decassílabo coxo ou reflectido?,
e num passo de dança de salão
optaram por zumbido


de leve, imitação de chilrear,
afago sobre as penas ilustradas,
lustrosas e macias como livros
com trovões nas lombadas.
Falavam todas juntas (ou zumbiam),
coro anti-ominoso e sossegado,
e ajeitando-se em capas e antenas,
sentaram-se a meu lado.


Uma espreitava a cor, a outra, o branco,
a terceira passava-me a borracha,
mas era tudo feito tão discreto,
modulação tão baixa,
que os braços de morfeu na casa toda:
braços inertes tão adormecidos,
ignorantes da mesa de onde em roda
cresciam os zumbidos.


Por fim, em jeito leve de tourada,
uma lançou a capa pelo ar,
outra roubou-me lápis e isqueiro
e fugiu a dançar
pela varanda, de onde descolou,
como avião, em rasto incandescente.
Só a terceira se deixou ficar
sentada lentamente.


E ficou por aqui, e não partiu,
vigiando-me noite e sobressalto,
segurando-me as pálpebras com mão
segura de mar alto,
mantendo cheia a ânfora do espanto
onde se habita o vento e a monção,
de quando em vez, lançando-me um ditongo
ou golpe de escansão.


Foi a pior, das três a mais perigosa,
a mais desavisada sem parecer,
cujos sapatos de pelica preta
deixavam antever
umas meias às riscas de luar,
com enfeites de sol e tempestades,
e uma malha caída e alguns raios
que me lembravam hades.


Foi ela a responsável pelo estado
em que ficámos mesa, folha, eu,
num desalinho azul, verso molhado
pela jarra tombada por Morfeu
que entretanto acordara, em fúria ampla,
em ânfora de sono destruído,
e que em brado solene emudeceu
o dela, e meu, zumbido.


E se eu tremia, ela como estátua
sem pestanar sequer, sem um tremor:
se ficara ofendida, se assustada.
E, para meu terror,
levantou brevemente a capa preta,
tirou da meia às riscas: não pistola:
um baralho de cartas e navalha
sem ponta, mas de mola.


Que comecem os jogos! Começaram,
mas éramos só três. E ela então
chamou pelas irmãs, que regressaram
em passo de salão.
E as três desavisadas toutinegras
sentaram-se outra vez, e eu e morfeu,
a braços e nos braços de uma crise:
é que ou morfeu, ou eu.


Que quatro é conta certa, cinco, não,
urgindo eliminar alguém presente.
E foi então que a mais desavisada
teve ideia brilhante:
um concurso de quadras com o tema
"as três desavisadas toutinegras",
e ganharia a que de pior rima
a dar com "toutinegras".


Perdeu morfeu, que escolheu a mais óbvia,
e logo ali lhe foram oferecidos
três destinos possíveis, todos eles
de fins enaltecidos.
Ou voltar a dormir, muito enrolado
nos seus braços compridos de embalar,
ou instalar-se à musa, encarregado
de baralhar e dar.


Ou então (foi a escolha sugerida
por mim, que ele aceitou, aliviado):
fazer o meu papel, pegar no lápis,
e sentar-se a meu lado.
E enquanto as três jogavam, entretidas,
em muito incerta conta de jogar,
morfeu e eu zumbíamos por quadras
e canções de embalar.


No livro de registos desta noite,
ficou assim rimada uma visita
de três desavisadas toutinegras,
sapatos de pelica,
e um morfeu a quem elas inspiraram
a comprar capa preta,
e que eu, quase a dormir, vi transformado
em mórfico poeta.

O Dia de Descanso

Levei a minha filha ao parque
e era domingo.


Pelo domingo, o parque
fica como o jardim do paraíso,
abertos os portões e nenhum deus.
Tudo inocência
entre verdura e saibro e cavalinhos
cabalisticamente numerados
até sete.


Levei a minha filha ao parque
e era Domingo
e não havia o anjo com a espada de fogo.


Não que na minha filha
cuidasse o guardião:
rasteiros os arbustos sem sítio de maçã
e esta filha tinha só três anos.
O anjo era meu só,
velha dez vezes mais e proibida
por regras de baloiço.


Mesmo dez vezes mais, voei. E tudo ausente.
Entre palmas e risos,
o anjo, o fogo, a espada, tudo ausente,
e o céu: só céu azul e limpo.


Levou-me a minha filha ao parque
e era Domingo,
o dia de descanso do anjo distraído
de expulsar e distraídos
os portões abertos -

As Curvas Aparentes da Memória

I


Mais: o tempo não teima, não se alonga,
antes ondeia como mar doente
e aceita ventos. Os caminhos que o fazem:
fio de seda tecida sem cuidado.


Depois de tantos anos, a memória
rompida de um anel,
mas nesse anel ver cheiros,
neles fulgirem coisas,
os alfabetos fáceis de brinquedo.


Mas, seda pelo meio:
feita de bichos leves, sonolentos,
de um perigo de ruir marés e luas.
Anel como das fadas,
dedos de carne firme, os seus póros abertos
a tudo, a tudo, a tudo.


A rouquidão de amor do meu avô,
rosas de mais cheirar e tudo em chamas:
uma curva de vento, o cobertor em verde e em castanho
onde sonhava até romper olhar,
até romper os sonos e os muros,
jardim forrado a prímulas e luz
e esse banco de pedra, acompanhando
o verão.


Como pilar de sol era o anel,
como pilar de sol era esse tempo
de bordar e forrar o fundo às coisas,
de ter em superfície o mais dourado,
o que parecia ser copas e ouros, um longo ás
de espadas.


II


Macio: aquele muro tão rugoso,
de cimento amarelo e muito quente,
as histórias faladas em voz rouca,
e eu sem saber como falar de amor.


E eu sem saber como prever as coisas,
e as coisas já sem ser como as pensava.
Bastando alguns segundos, algum sol
infinitesimal, e o já sem ser.


O cimento amarelo: um pó tão fino,
e o calor como fio insidioso.
Bastando alguns segundos, algum frio,


e o muro mais rugoso que macio,
e o cheiro do caramanchão de rosas:
um cheiro a números e a letras mortas.




III


Mas: se o tempo se alongasse?
Se o tempo: um cavalo intenso
e de infinito mistério,
trazendo de novo agosto,
um cheiro a sério de rosas,
o caramanchão bordado,
o meu avô outra vez,
o pão que ele preparava,
a ternura nos seus dedos,
e o seu anel de uma pedra
que eu não consigo lembrar,
mas que a textura me lembra,
e que a sua cor por força
me ajudaria a lembrar?
Se ele trouxesse outra vez
as letras mortas e lentas,


IV


agora, graças ao fácil dom de teimar desse tempo,
cintilando novamente, no seu mais justo lugar,
habitando como gente o quintal feito de estrelas,
o banco de cheiro ameno, o cobertor em castanho.


E a noite que, por justiça seria fria, não era:
antes de um calor de sol, de rosas de primavera
minúsculas, redundantes de roda ao caramanchão,
acumulando-se em nuvens cor de rosa, cor de sol.


E a seda: um campo minado de meiguice e de agasalho,
tecida em tanto cuidado, num tão mais puro cuidado,
que Deus, se aí existisse e quisesse controlar
o tempo agora perfeito, de um dom de teimar tão grande,


capaz de tal se alongar sobre a vida e a memória,
que Deus, se aí existisse, havia de desistir,
havia de se juntar ao verde do cobertor.
E havia de descansar no banco desse jardim.


E usaria o anel. E teria com certeza
uma voz rouca

Um Pouco Só De Goya: Carta A Minha Filha:

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.


Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo,
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas -- é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.


E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.


E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.


Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.


A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos

Receita Para Um Soneto Não Liofilizado

Privar a humidade a um soneto
é deixá-lo sem graça e consequente
em ressequidas quadras, os tercetos
com versos muito enxutos. O soneto


quer-se molhado como o pão-de-ló,
esse de crosta leve como sol,
as gemas a tremer ainda moles
e um exótico cheiro a Jericó.


Assim. Com rima feita e reforçada
a escorrer pela sílaba a escansão,
a emoção bebendo a emoção


(e uns versos, já agora, um pouco mais:
uma espessura acesa como mel


e, da janela húmida de sais,
saída da banheira: Rapunzel,
sem escada, a cabeleira, a lado algum.)



Neurónios Poéticos

Algum neurónio que fugiu à mãe
e se refugiou no canto esquerdo,
sob o meu ouvido.


Aí, fez ninho,
redondo e tão preciso
como centro do alvo
mais premente.


O coração desbaratando forças,
uma saudade sempre
consistente:
a mãe nunca deixando
de o chorar


De vez em quando, o seu suspiro
ecoa, no canto esquerdo
sob o meu ouvido
- que o eco mo devolve
do avesso.


E uma lágrima cai na
folha em frente. Redonda,
independente.


Inundando (depende) ora centro,
ora canto, ora margem de texto.
0 ninho devagar:
desequilíbrio manso

Em Creta, Com O Dinossauro

Nunca lá estive,
mas gostava.


Também de me sentar a mesa de café
descontraída (mesa e eu)
e ter à minha frente
o dinossauro.


Pata traçada sobre a rocha,
aquela onde Teseu
não descobrira entrada de caverna.
Conversaríamos os dois, eu
na cadeira, ele
altamente herbívoro e escamoso,
olho macio e muito social.


Depois, o fio!


Que Ariadne traria, pouco solene
e debaixo do braço.
Um fio de seda ou prumo ou aço.
E o dinossauro,
de pouco habituado (ainda assim)
a um tempo tão nosso,
perguntaria para que era aquilo.


"Para guiar Teseu", era
a resposta de Ariadne. E depois,
piscando o olho, ainda mais macio
que o do monstro escamado,
"Ou para o confundir"


Convirá referir neste momento
que Teseu: entretido no palácio
a estudar labirintos com o rei,
ignorante de tudo.


Na rocha, cheia de algas macias
de veludo,
abriria o dinossauro em gesto largo
as patas dianteiras, aprovando
a ideia.


Estávamos bem, os três,
beberricando calmos o café
servido por meteco - bem cheiroso.
Enquanto no palácio, o labirinto inchava
e Teseu, ansioso por agradar ao Rei,
queimava, de frenético, nobres pestanas
gregas.


No ar minóico, rescendia
o perfume a laranjas,
e, entre vários cafés e golos de retsina,
o dinossauro mastigava calmo
quatro quilos (à vez) de
ameixas secas e doces
tangerinas,


narrando a nobre paz
que se seguira ao caos:
não sabia se estrelas em cósmica viagem
de chuva de brilhantes,
se glaciar medonho
reconcertando o ritmo da Terra,
se só o seu tamanho -- imenso
e desumano --
a dar lugar ao mito.


Em labirinto
de muitos milhões de anos,
tinha chegado ali. Sem saber como.
"É como o fio que eu trago
aqui, para Teseu", Ariadne
diria, "O de aço, seda, ou prumo,
que conduz ou confunde, conforme
ocasião."


-- A traição!


Derivaria Ariadne, então,
falando de Teseu: da traição que,
julgava ela,
o levaria a abandoná-la em Naxos
e do compasso incerto do que fora
anterior à traição.
Poseidon pelas águas reluzia,
o destino de Minos e de Cnossos
ainda por marcar;
só o monstro sabia como deuses e homens:
comuns a odiar.


Sabia, mas calava. Que silêncio:
a virtude maior
de sáurio que se preza.
E a conversa seria tão calma, tão amena,
que esquecia Ariadne derivações
de mito,
juntando-se à retsina.


"Um brinde", proporia o dinossauro,
em gesto social.
"Um brinde", repetiríamos nós (princesa
e eu).


E o fio de renda fina voaria
qual pássaro pré-histórico,
até ao mar Egeu.


Pata a tapar a boca de franjas
inocentes,
palitaria então o Dinossauro os dentes...


(E do palácio já saiu Teseu.
Mapa e espada na mão.
Mas sem o fio.)

Coisas De Partir

Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre, sem ti.


Dele ausento: os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?


E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?


Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro urn advérbio, depois um adjectivo,
depois urn verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras

Soneto Científico A Fingir

Dar o mote ao amor. Glosar o tema
tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo
e como a arte: nem útil nem moral.


Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha desvastada?
O soneto é antigo? Pois que seja:
também o mundo é e ainda existe.


Só não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
Se me dobro demais por ser mulher
[esta rimou, mas foi só por acaso]


Se me dobro demais, dizia eu,
não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
ou seja, na mentira do que mostro.


E se é soneto coxo, não faz mal.
E se não tem tercetos, paciência:
dar o mote ao amor, glosar o tema,
e depois desviar. Isso é ciência!

Intertextualidades

Microscópica quase,
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.


Emprestaram-me o livro,
mas a migalha não.
No mistério mais essencial,
ela surgiu-me recatadamente,
a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento,
quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.


Fez-me pensar nos níveis que há de ler:
o assunto do livro
e a migalha-assunto do leitor


(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas,
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)


Fiquei com a migalha,
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia

Testamento

Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita


Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas


Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu


Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras

Diferenças (Ou Os Pequenos Brilhos)

Quando eu morrer, a diferença já não:
o próximo fulgir de estrela: igual,
na panela fervente o vegetal
à mesma temperatura. Quando eu morrer,
a minha rua será a mesma rua,
a luz do candeeiro: luz igual.
Os meus livros terão as mesmas cores,
as mesmas letras, os mesmos sinais,
tal como na cozinha os pontos cardeais
serão os mesmos onde quer que eu for:
aqui, botão do gás, ali os pratos
a flores discretas, recém-arrumados,
e, do lado direito (simbólico o seu estado),
máquina de lavar. Quando eu partir,
as coisas ficarão como devem ficar.
Perder-se-á, é certo, da cozinha
o seu nível onírico e de inspiração:
nunca mais o fogão a dizer versos,
nunca mais o fogão: sem ser, sendo, fogão.
Para além disso, as rendas serão rendas,
as gavetas, gavetas. E, como é óbvio,
as janelas, janelas de entrar luz.
E o incêndio que vi nesta parede
(Tróia onde mil Cassandra a convidar)
ceder-se-á ao sítio onde o sonhei e pus.
Ou seja: no papel. Que ficará.
Que, como livro: anel interestelar,
como cebola à espera de um luar
que outros olhos não vêem. Mas seduz.
Quando eu morrer, a diferença já não.
Só um fulgir de som? Só zunido de abelha
sobre flor? Minúsculo cavalo na parede
em ínfimo esplendor?

O Excesso Mais Perfeito

Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.


Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.


Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.


Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.


Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.


Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada -

Um Céu E Nada Mais

Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

Exercício (Em Amarelo) de Texto e Reescrita

Se a casa amarela fosse o que eu queria que ela fosse:
uma casa povoada de gente, louças e tempo,
e não assim junto ao forte, emoldurada por anjos
e cadeiras estofadas de minutos e segundos.
Se ela tivesse memórias perdidas pelas cornijas
ou por salas de veludo rodopiando no vento
do seu centro mais que centro: um narciso, uma papoula,
uma acácia muito bela desconjuntando o terreno,
invadindo o corpo todo dos seus jardins junto ao mar,
e uma louça azul e branca deixada por navegar
sobre a mesa da cozinha. Em vez das horas contadas
como pinhas ou agulhas de pinheiro, ou de metal,
servidas para vestir o fantasma mais igual
que invade devagarinho, que rouba sonos e sonho,
que entrelaça como a acácia o tempo que eu lá gostava,
um tempo feito de louças, de gente que fosse a sério,
de mistérios e avessos, mais que avessos de mistério.
E tão anti-Régio e eu, tão anti-rima e balada,
e tão contra o mais antigo que assim renasce outra vez:
de quando há anos falei de uma casa muito branca
rodeada de pinheiros, quase thor em demasia,
de quando reli por ler a toada mais toada
que me dera que fazer, muito mais que a tabuada
que me custou a aprender, que me custou a saber
muito mais que a casa branca.
Por isso a casa amarela,
coitada, é o que se pode, nestes tempos mais modernos,
em que o verso foge e ruge, e range e teima em fugir.
Por isso estes anjos todos, por isso este tom tão surdo,
este exercício esotérico, que pode parecer absurdo,
mas que afinal mais prepara o final que eu queria novo,
mas que só consigo frouxo, um pouco delicodoce,
com seus veludos e louças e cozinhas de brincar.
Se a casa amarela fosse o que eu queria que ela fosse,
nem pretexto para o texto, nem tanto texto a rimar.